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Instinto e ego

Outro dia, li um artigo de Natalia Varssegova que narrava uma história improvável. Uma criança de um ano e nove meses sumiu de sua casa, que fica num vilarejo no interior da Rússia. Naquele dia, o pai tinha ido viajar para uma cidade próxima. A mãe resolveu passar na casa de uma vizinha e deixou Liuda, a filha mais nova, com a irmã mais velha, de quatro anos.

A menina mais velha desobedeceu e, como não raro, foi brincar com a filha da vizinha. Quando a mãe viu sua filha, correu para casa, preocupada com Liuda. Procurou-a em todos os lugares que a pequena costumava se esconder. Mas ela tinha desaparecido. Isso aconteceu no dia 17 de agosto de 2021.

Os pais ficaram apavorados. Ela estava aprendendo a ficar sem fraldas. Ficava sem roupa e descalça em casa. Todo o lugarejo se mobilizou na procura dela, mas em vão. Finalmente, no dia 20 de agosto, a menina foi localizada em uma floresta densa.

Sem roupa e descalça, Liuda entrou em uma floresta próxima. Foi encontrada a mais de 10 quilômetros de casa, em um lugar que só pode ser alcançado através de um riacho (a nado!). As noites já estavam bastante frias, e no segundo dia de seu desaparecimento uma forte tempestade desabou sobre a área da floresta.

A criança foi encontrada em um bueiro coberto de urtigas. Os salva-vidas ficaram surpresos com o que viram: além dos pés machucados e da perda de peso, ela não tinha sofrido nada, estava bem-disposta, sem medo das pessoas ao redor. Faminta, chamando a mãe, mas sem o desespero esperado numa situação dessas.

História inacreditável! Depois da narrativa, a autora do artigo apresentou comentários de especialistas explicando como uma criança de menos de dois anos conseguiu sobreviver sozinha durante quatro dias em uma floresta fechada. Segue um resumo das explicações:

  • Crianças nesta idade conseguem sobreviver em baixas temperaturas, inclusive as nascidas na região, se vestidas, suportam temperaturas abaixo de 20 graus. A família de Liuda mudou para o lugarejo para fugir de Moscou. O pai é cientista e a mãe médica. Por isso a menina não está acostumada com a vida ao ar livre;
  • Uma criança nesta idade consegue ficar vários dias sem comer. Não pode passar sem água, mas na floresta havia água disponível;
  • A criança não entra em pânico, não fica com medo. Provavelmente Liuda conseguiu dormir, não desperdiçando seus recursos vitais;
  • A criança se adapta com muita facilidade, não fica estressada. Para ela, a situação nova é natural.

A história de Liuda me trouxe algumas reflexões. O ego do ser humano normalmente se torna ativo a partir dos três, quatro anos de idade. Até então, o funcionamento e a sobrevivência do organismo estão sob responsabilidade da parte instintiva do corpo, que não tem relação com a personalidade, ou seja, o ego.

Um animal doente sai em busca de plantas que ajudam na sua cura. Uma fêmea consegue parir sozinha e cuidar dos seus filhotes perfeitamente. Tudo isso é instintivo.

À medida que o ser humano se individualiza, ocorre um afastamento de sua parte instintiva, a que é capaz de mobilizar recursos vitais para se salvar.

O ego caracteriza a personalidade do indivíduo e não pode ser eliminado. No entanto, nos últimos tempos o ego tornou-se um vilão. Passou a ser visto como algo negativo, sinônimo de presunção e vaidade.

Mas será que ele é tão ruim assim? Muito discutido na esfera da psicologia e da psicanálise, o ego é o núcleo de nossa personalidade. Ele assume a responsabilidade pela sobrevivência individual em um cotidiano conhecido. É parte consciente, responsável por interpretar a realidade, pela memória, pelas emoções e pela relação com o meio. O ego julga, fica apavorado ou ama. Vivemos sob efeito dele.

Quando falamos de autocura, é fundamental que a pessoa se liberte da influência egóica para acessar sua consciência instintiva, que dá sinais – às vezes em sonhos – de como se restabelecer a saúde.

No Solaris, estudamos o ego através do Eneagrama, um instrumento que permite reconhecer a personalidade em profundidade e sua influência na saúde da pessoa. Podemos aprender a viver fora da ditadura do ego, mas sem destruí-lo.

Fonte:

https://www.kp.ru/daily/28321/4464440/
Sofia Mountian
Criadora da Teoria da Abrangência, fundadora do Instituto Solaris, presidente da ONG Solaris e uma das sócias da Plênita Consultoria. Sofia escreve mensalmente na Revista Solaris.
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