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Projeto Independência Empresarial

Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, em 27 de fevereiro de 1999.

A vida moderna tem algo que ninguém nega: o movimento alucinante que não nos permite sentir a estabilidade de “terra firme”, o que assusta muito.
Por outro lado, a internet, a televisão e o cinema vendem-nos a grandiosidade da figura humana. Temos nas mãos uma poderosa tecnologia, que faz de cada um de nós uma pessoa especial. Porém, ao participar da vida da sociedade moderna, sentimos que perdemos a nossa individualidade, desempenhando os papéis que situações impostas exigem. 

O homem está vivendo de acordo com as necessidades dos coletivos dos quais participa. As regras, a disciplina, a exigência de estudo superior, o gosto de se vestir etc. dependem totalmente da sociedade.

Perguntem a qualquer um se esse é capaz de levantar-se diariamente às 5h, não fosse exigência do trabalho ou da escola dos filhos? A disciplina normalmente depende das regras impostas e não da nossa vontade. Pouquíssimas pessoas conseguem manter os horários que querem por muito tempo.

A pessoa se sente totalmente fragmentada, tentando se adaptar às leis e às exigências das situações de que participa, pois sabe que, se não obedecer, perderá o seu lugar. Como dizem: ninguém é insubstituível. Assim corre a nossa vida.

Mas cada homem tem o seu mundo interior, que não aceita essa fragmentação.

Existe uma visão interna sobre o mundo e sobre si. Muitas situações da nossa vida diária não são aceitas pelo nosso eu interior. Ele detesta desempenhar determinadas funções e conviver com pessoas com quem não pode falar tudo o que pensa. Afinal de contas, existe a “boa educação” ou simplesmente o medo das possíveis consequências. 

O confronto da fragmentação externa com a voz interna, que sempre opina sobre a nossa vida e não pode se expressar livremente, gera enormes conflitos, que atormentam cada ser humano.

Essa é uma realidade que tudo mundo já conhece muito bem. A questão que surge: como enfrentá-la?

Para poder responder positivamente, temos que nos perguntar se entendemos bem a pergunta. Afinal, o que é uma realidade?

A resposta parece simples. É aquilo que existe e consegue ser perceptível aos  nossos cinco sentidos. O trabalho é uma realidade, a escola é uma realidade. O lado visível ou material da realidade não desperta nenhuma dúvida.

Porém, ela é mais que isso. Existem mais dois aspectos da realidade que são invisíveis e, portanto, não muito fáceis de perceber.

O primeiro envolve a nossa relação individual com a realidade. É a nossa atitude emocional. A motivação faz parte de qualquer realidade. 
Normalmente não achamos esse lado muito importante, mas é a principal fonte de energia, pois ela garante o funcionamento de qualquer realidade.  

O segundo envolve a relação da realidade com o seu meio ambiente. Esse lhe dá a permissão para existir. Isso é mais difícil de entender, pois não nos envolve individualmente. Esse lado, no entanto, mostra que para existir é necessário ser útil e saber transformar o meio ambiente. Por isso, o lado intelectual e criativo deve fazer parte de qualquer realidade.

Se existe violência, é porque há permissão do seu meio ambiente para isso. Não adianta repressão ou proibição, somente a criação de novas ideias pode mudar esse meio ambiente e resolver o problema. Esse lado é extremamente importante, pois lida diretamente com a existência. A criatividade intelectual depende do homem como indivíduo. Pois as grandes ideias não surgem através de um planejamento nem de acordo com uma função técnica.

Podemos dizer que uma realidade só pode ser compreendida através destes três fatores: material, que é perceptível aos nossos cinco sentidos; emocional, que conhecemos como motivação; e criatividade intelectual, que mantém a sua razão de existir no meio ambiente.

E no caso de uma empresa? Qual seria sua realidade? Teria o mesmo mecanismo? Sim, a realidade de uma empresa tem a mesma estrutura, composta de três partes.

A primeira é funcional. É a parte visível da realidade, que envolve todas as áreas da empresa (produção, fornecedores, financeira, etc.), assim como a parte material (prédio, máquinas, equipamentos, etc.).

A segunda é a de motivação. Ela depende das pessoas que trabalham nela, que doam sua energia à empresa, que, por não ser um ser vivo, necessita da energia vital para poder existir. Este seria o primeiro lado invisível.

A terceira é criativa. Esta parte cuida do espaço existencial que é preenchido pela influência do produto da empresa no seu meio ambiente. A ampliação deste espaço consolida a existência da empresa, que se vê aceita no mercado. Quando o lado criativo da realidade da empresa funciona, a influência do produto no seu meio ambiente torna-se tão forte que o nome do produto se torna íntimo das pessoas, fazendo parte integrante das suas vidas. Com isso, a empresa  adquire o seu maior bem, que nunca sucumbe a crises, passageiras ou duradouras. Este é segundo lado invisível. 

E qual é o lugar do funcionário nessa realidade? Quem é o funcionário? A resposta parece óbvia. É aquele que desempenha determinada função.
Porém, o homem é muito mais que isso. Ele participa das três partes da realidade da empresa.

É inquestionável a importância do funcionário no desempenho do seu papel profissional, mas esse aspecto lida somente com o lado visível da realidade. Para participar das partes invisíveis, é necessário algo maior, a sua individualidade.

A empresa a ignora, pois nem sabe, muitas vezes, como controlá-la. Até mesmo o próprio funcionário procura esconder o seu lado individual.

Como juntar o homem-função com o indivíduo? Este é o grande desafio: conseguir unir no mesmo espaço o funcionário que pensa, tem o seu mundo interior, sente e doa sua energia vital à empresa e o profissional que é previsível, com obrigações e tarefas.

Se a empresa existe, é porque possui pessoas que conseguem preencher os três lados da realidade. Muitas vezes, é o próprio dono que faz isso. Ou aquele fuçador que sempre quer saber mais do que precisa. É só procurar. A busca vale a pena. Pois o homem que exerce plenamente seus lados profissional e individual é a principal fonte da vitalidade da empresa.

Este funcionário nunca será substituído por nenhuma máquina ou pela tecnologia moderna. É ele quem garantirá o alimento vital permanente, mantendo a unidade e a sobrevivência da empresa. Este funcionário nunca deixará de contribuir, pois o seu trabalho se encaixa perfeitamente na sua vida.

Assim, o conflito entre o trabalho e a vida pessoal deixará de existir. A empresa se tornará uma fonte de grande satisfação e crescimento pessoal.

Considerando que o verdadeiro dono da empresa é aquele que canaliza sua energia vital para que ela possa existir, o funcionário também será o seu verdadeiro dono, mesmo que não o seja de fato. A velha contradição entre capital e trabalho terá sido superada.

Parece surreal, mas é uma realidade que pode ser perfeitamente implantada e permitirá uma convivência saudável e duradoura.
Basta o funcionário parar de se ver como um papel descartável e começar a participar dos três aspectos da realidade da empresa: funcional, de motivação e o criativo, harmonizando o seu mundo interior com o exterior, sem medos e rancores; e a empresa compreender que esse funcionário é o seu verdadeiro dono, permitindo a participação completa dele na sua realidade.

Com isso, acontecerá o crescimento individual das pessoas e a estabilidade, ou seja, o espaço garantido para a empresa na sociedade. O projeto Independência Empresarial pode viabilizar esse desafio.



Participaram do projeto Independência Empresarial a socióloga Emília Emiko Kita Lopes, o empresário Marcos Berenholc, o engenheiro e professor Jacques Luba e a especialista em Saúde Pública Toshiko Hama.

Sofia Mountian
Criadora da Teoria da Abrangência, fundadora do Instituto Solaris, presidente da ONG Solaris e uma das sócias da Plênita Consultoria. Sofia escreve mensalmente na Revista Solaris.
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