revista solaris

Um Natal — parte 2


“Acuda, acuda” — gritou o gato do filho da Velma, ele ajudava a mãe, que também desmaiou.
E falava sem parar. Estava desesperado; ajoelhado no chão, segurava a mãe, abanando o rosto dela. Na loucura do momento, pela primeira vez reparei na voz dele. Era horrível. Tinha um ritmo desafinado, aguda como giz que não se entende com a lousa. Três homens entraram pela porta da frente.

Minhas mãos suavam frio, tum tum tum tum tum, meu coração disparou; eu queria gritar mas não tinha voz. Parecia que não escutava mais nada ao meu redor, será que desmaiei e não sei que desmaiei, eu sentia o metal frio tocando meu braço na cadeira onde sentava. Está tudo bem, relaxa, relaxa. Relaxa!

O piano soou gravemente. Um gato branco correu pelas teclas.
Parei de escutar o palpitar do meu coração. Aliás, estava paralisada. A mulher do prefeito chorava deitada no chão.
Uma rajada fria entrou pela sala como o sopro de um Deus bravo ou de Satã. Olhei para o quintal. Jesus!! Um lençol branco cobria o corpo do prefeito no gramado.
O peru, o conhaque e o lençol embrulharam meu estômago. E este cheiro… quem fuma charuto agora? Comecei a passar mal, oh não, não…

Blarrgh.

Vomitei. No sofá de veludo. O gato preto pulou no sofá e começou a fuçar o meu vômito. Foi assim que conheci Manuel, meu anjo que caiu do céu.
“Senhorita? Você está bem? Aqui” — ele me ofereceu um copo de água. Eu aceitei, ele segurou o copo para eu beber, a mão dele esquentou as minhas, que estavam gélidas, a água desceu pela minha garganta como uma fonte de luz, me senti bem instantaneamente. Finalmente consegui falar, “Que Natal dos diabos!”.

“Foi veneno, garanto.” Manuel sussurrou, a voz dele, que voz deliciosa…, acalmou meu corpo, era masculina e suave, “a esposa, garanto”, ele continuou, “crime de paixão. Garanto que ele tinha um caso”, olhou em direção à Velma, “com aquela, a que caiu.”
“Não pense que eu não sabia de vocês” — a mulher do prefeito gritou, agora sentada no chão. O vestido longo aberto para ajudá-la a respirar, a barriga branca aparecendo, “sua vaca, desaforada, sem-vergonha, na noite da Missa de Galo, na minha própria casa?” — esbravejou para a Velma, o rosto vermelho, parecia um pimentão e cuspia quando berrava.

Detetive Manuel, meu anjo que caiu do céu, acertou na mosca. Foi a esposa, um crime de paixão, na noite da paixão de Cristo e na noite em que nos apaixonamos. Foi amor à primeira vista, ele declarou. Comigo foi na primeira mordida; minha avó dizia que se prende um homem pelo estômago, ela cozinhava bem. Eu digo que se prende uma mulher também! A bacalhoada do Manuel… eu sempre amei bacalhoada e romances policiais.

Leia a parte 1.

Daniela Pompeu
Daniela Pompeu, brasileira-americana, neta, filha, sobrinha e irmã de jornalistas, mora em Los Angeles, Califórnia. Graduada em Inglês pelo Hunter College, Nova Iorque, com especialização em Literatura Medieval. Formada em Acting pelo Catherine Gaffigan Studio of Acting, Nova Iorque. Escreve um blog semanal: www.danielawrites.net . Autora dos livros "Tea with Dani", "It's with H, Sir" e "Never Let a Good Crisis Go to Waste, I Can't Stand the Bull Crap".
Compartilhe:

veja também

edições anteriores

outros títulos do autor

O bebê de Ingrid

Ela fechou a porta e suspirou.Que alegria!! Pela primeira vez na vida, em seus 40

Pela janela do trem

“Passamos!”“Passamos! Por que não parou?”O trem chacoalhava. Nós dois com a cara grudada na janela

Décima Surpresa

Aqui estou na janela do quarto lateral da sala de dormir, uma janela lateral muito

Nona Surpresa

Quer começar uma história…que comece bem! Aqui vai um dos meus começos favoritos:“Two households both

Oitava Surpresa

Bem-vindo, Outono! Que prazer rever esta estação deliciosa, principalmente depois de uma semana de 38/40ºC